sábado, junho 05, 2004

Homenagem de Almodóvar a si mesmo

"Má Educação"


Um travesti aspirante a actor procura um antigo companheiro de colégio, agora um bem sucedido realizador de cinema, que já não vê há mais de 15 anos. Juntos recordarão os anos vividos numa escola católica, - e as suas consequências - num duelo de realidade e ficção, a partir de histórias paralelas e entrelaçadas.



Pedro Almodóvar mostra-se filme a filme mais seguro de si mesmo. Da sua habilidade como realizador e do seu êxito. O seu mundo, semi-oculto no armário até à bem pouco tempo, abriu as portas de par em par a uma nova sociedade que se entregou a ele. O seu cosmos de marginalizados, homossexuais, lésbicas, travestis… confere-lhe êxito atrás de êxito perante um público que celebra os seus arrebatados melodramas cruzados por apontamentos de novela patriótica, a sua visão cínica e travessa sobre a Espanha cigana.
Após dois Oscar e uma afamada carreira dedicada ao sentimento do desejo, Pedro Almodóvar volta a arriscar e apresenta outra película inquietante que se mete em pensamentos sombrios. Uma desagradável crónica dos maus tratos que escurece à medida que avança até se converter numa obra negra como a noite. O manchego parece fazer contas com o seu passado e voltar todos os seus demónios através da estreia espanhola mais publicitada do ano.
"Má Educação", tal como "Tudo Sobre a Minha Mãe / Todo sobre mi madre", contém três histórias diferentes que se misturam até formar um retrato do abuso que sofrem ou infligem diferentes pessoas em função de se a sua posição é dominante ou não. Almodóvar utiliza esta metalinguagem - a relação dos relatos entre si - para situar a acção em três épocas diferentes, nos anos 1964, 1977 e 1980, duma Espanha colorida pela qual pululam padres, travestis, toxicodependentes, cineastas e uma desagradável sensação de vingança.
A acção começa quando um jovem actor (Gael García Bernal) oferece um guião a um realizador de cinema (um delgadíssimo Felé Martínez) que foi o seu primeiro namorado num internato religioso. Este guião abre-se e aparece um travesti que tenta chantagear um padre - interpretado por um preciso Daniel Giménez Cacho - com a publicação duma crónica sobre os seus abusos sexuais. Por sua vez, o sacerdote lê o relato e então surge outra história, protagonizada por duas crianças apaixonadas que temem o director do seu internato, obcecado com um deles e...
Pese a que alguns protagonistas de "Má Educação" se revelam como seres depravados e déspotas, Almodóvar não os julga em momento algum, como também não o fez com Benigno, o enfermeiro violador que Javier Cámara interpretou em "Fale com Ela / Hable con Ella". Esta neutralidade faz que verdugos e vítimas se mostrem com toda a sua impactante crueza, ainda que a personalidade dalguns deles se esfume pelo constante salto entre histórias e as diferentes atitudes que nelas mantêm.
O realizador de "Em Carne Viva / Carne Trémula" debuxa os limites entre realidade e fantasia para jogar com a percepção do espectador até o obrigar a deixar-se levar por um drama devastador. O personagem tríptico de García Bernal - homem, mulher e farsante - e a dualidade do padre, implacável quando é um abusador com sotaina e débil quando é um amante que anseia ser correspondido - encarnado nessa etapa por um ardente Lluís Homar -, são traços dum amplo desenho de desejos humanos.



Como nos seus filmes anteriores, "Má Educação" tem muitas referências à filmografia do próprio Almodóvar e, inclusive, à sua própria vida. O realizador disse que o seu filme mais obscuro homenageia o grande "Pagos a Dobrar / Double Indemnity" (Billy Wilder, 1944), uma fita muito negra onde Fred MacMurray e Barbara Stanwyck planeiam matar o marido desta para receberem o seu seguro de vida. Mas, além disso, o seu filme serve-lhe, sobretudo, como homenagem ao seu cinema e a si mesmo.
De facto, "Má Educação" assume como ponto de partida uma conhecida cena de "A Lei do Desejo / La Ley del Deseo": aquela em que Carmen Maura encontrava um padre na capela dum colégio e lhe confessava que ser aquele rapazinho que ele tinha amado. Mais adiante, Zahara, o García Bernal travestido, pavoneia-se num número de cabaret e tenta seduzir uma jovem com uma rosa, numa clara imitação do Miguel Bosé de "Saltos Altos / Tacones Lejanos" (1991).
"Tudo o que não é autobiografia é plágio", escreveu o jornalista e escritor espanhol Francisco Umbral. E Almodóvar repete-o enquanto pode para se proteger dum possível excesso de ego. Porque o menino que enlouquece o sacerdote (Raúl García) canta como os anjos, tal como quando ele estudava num colégio; Felé Martínez interpreta um autor 'gay' da Movida que dirigiu "La abuela fantasma" - um projecto que ainda tem em mente -, e, como se não bastasse, esclarece-se que ele - Pedro, perdão, Felé Martínez - se converterá num autor dedicado ao sentimento do desejo.
O cineasta, que parece ter uma implicação íntima com aquilo que conta, assina uma obra turbulenta, de muitas leituras, incómoda em algumas fases, tão pessoal como as anteriores e, provavelmente, a mais autobiográfica de todas. Um novo ciclo na carreira do mais afamado realizador espanhol.
Luís Ferreira (Lisboa)

Título Original: "La Mála Educacion"
Realização de Pedro Almodóvar (Espanha, 2004)
Produtores: Agustín Almodóvar e Pedro Almodóvar
Uma Produção de El Deseo S. A.
Intérpretes: Felé Martínez, Gael García Bernal, Daniel Giménez Cacho, Lluís Homar, Javier Cámara, Petra Martínez, Nacho Pérez, Raúl García Forneiro, Francisco Boira, Juan Fernández, Alberto Ferreiro, Roberto Hoyas, Francisco Maestre e Leonor Watling
Argumento: Pedro Almodóvar
Fotografia: José Luis Alcaine
Música: Alberto Iglesias
Distribuição: Warner Sogefilms S. A.
Distribuição em Portugal: Vitória Filme - Ecofilmes
Género: Crime / Drama / Thriller
Duração: 105 minutos

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