segunda-feira, maio 31, 2004

Curiosos Anos do Cinema (2)


por Vasco Martins

COMO UM PREFÁCIO

A noção de história teve a sua génese na civilização grega, como descrição de um acontecimento, e foi durante a Ilustração - nome por que ficou conhecido um movimento intelectual do século XVIII - quando este género, convertido em género narrativo e com uma dimensão diacrónica, se extrapolou, a partir de Winckelmann, ao âmbito das chamadas Belas Artes. Com a sua "História da Arte na Antiguidade" (1746), Johann Joachim Winckelmann (1717-1768) fundou a arqueologia artística, ao superar as histórias biográficas de Giorgio Vasari (1511-1574) com uma história da evolução das formas, quer dizer, com uma verdadeira história estética. Não surpreende que este género literário se ampliasse a partir de um certo momento para narrar os acontecimentos relativos à técnica, à indústria e à arte cinematográfica.
Parece que a primeira história do cinema, que embora primitivo era já digno desse nome, se publicou em Paris em 1925. Trata-se do livro "Histoire du cinématographie de ses origines à nos jours" (Christophe Gauthier-Villars), escrita por G. M. Coissac, cujo título proclama sem equívoco a sua vontade e a sua identidade. O livro de Coissac, hoje quase esquecido, tem sobretudo um interesse como testemunho pessoal de alguém que cresceu em sincronia com a evolução de um novo meio de expressão.
Em 1925 existia já uma consciência da historicidade do fenómeno cinematográfico. Isso também não surpreende. Se já para Canudo, autor do "Manifesto das Sete Artes" (1911), e para Delluc o cinema era uma arte, nada de mais natural que a evolução desta arte pudesse ser objecto de um relato, do mesmo modo que outros livros haviam narrado a história da pintura ou da arquitectura. Esta possibilidade converteu-se quase em necessidade quando se tomou consciência da efemeridade da exibição cinematográfica, do rápido desaparecimento dos filmes em circulação comercial, efemeridade muito em voga durante a guerra de 1914-18 e que activou projectos tendentes a fazer um inventário da produção desaparecida ou invisível. A chegada do sonoro empurrou brutalmente o cinema mudo para o terreno do desuso, do passado, quer dizer, da história. Não se trata pois duma casualidade que em 1930, nos umbrais do sonoro, aparecessem dois textos clássicos em Londres e em Paris: "The Film Till Now", de Paul Rotha (1907-1984), e "Panorama du cinéma", de Georges Charensol (1899-1995).
Mencionei o propósito da necessidade de estabelecer um inventário selectivo dos filmes do passado. Esboçado por Louis Delluc (1890-1924) com as suas críticas, este inventário foi formalizado em 1935 por Jean-Georges Auriol (1907-1950), o qual no número 357 da revista Pour Vous (de 17 de Setembro) estabeleceu uma lista de títulos clássicos da história do cinema. A chegada do sonoro havia permitido o nascimento da categoria de clássico na evolução do cinema, apesar da sua juventude. Dois anos antes, Antonin Artaud (1895-1948) havia lamentado a «precoce velhice do cinema».
Se esta foi a génese da noção de história no campo do cinema, a teoria conheceu uma evolução distinta. Há que recordar que o cinema nasceu com teorias implícitas nas consciências dos seus pioneiros, em relação com a ontologia dos seus produtos. Nos catálogos primitivos dos Lumière e de Méliès encontram-se já fórmulas dos seus modelos respectivos, o modelo de «la nature prise sur le vif» de Lumière e o modelo dos «films composés de scènes préparés artificiellement» para Méliès (referido no seu catálogo de 1902).
Em que consiste a teoria do cinema? A teoria do cinema desenvolveu-se como uma reflexão metacrítica sobre os modelos de representação canónicos, adoptados pela indústria e aceites pelo público. A teoria revestiu a forma de uma normativa inconfessada, derivada da apreciação crítica das práticas dos cineastas, e edificada a partir de uma terminologia alheia ao cinema: adaptação, cenário, iluminação e interpretação eram termos provenientes do teatro; o relato vinha da literatura; os valores plásticos procediam da pintura; o ritmo da música e da dança; a montagem do vocabulário dos engenheiros.
A história é um género narrativo e os códigos da narração, na Grécia, surgiram da produção de histórias de ficção, pelo que as histórias com vocação documental dificilmente escaparam à sua contaminação. E não escaparam porque na sua construção diacrónica aparecem metamorfoses de sujeitos e porque o historiador tem de preencher as suas lacunas, fazer ilações e formular interpretações, operações que conduzem à reprodução da sua subjectividade.
Existem, efectivamente, diferentes ideologias para os diversos historiadores. Nos anos cinquenta, Henri Langlois (1914-1977), apoiado na sua imensa erudição cinematográfica, gostava de propor que o cinema avança em ciclos que alternam o clássico e o barroco, talvez sob a influência de Eugenio D'Ors (1881-1954). Langlois assim o entendia e com isso demonstrava que em todo o relato histórico existe um coeficiente inextirpável de subjectividade. Na operação de interpretação de um acontecimento misturam-se a realidade e o 'mythos', o relato e a fábula. Um óptimo exemplo disto encontra-se na precoce história do cinema americano de Terry Ramsaye (1885-1954), "A Million and One Nights" (New York: Simon & Schuster, 1926), escrita em honra do seu protagonista, Thomas Alva Edison. "A Million and One Nights" pode ler-se como uma novela, porque no fundo é uma novela.
Tudo isto para dizer que a História do Cinema pode ser uma ciência, mas temperada sempre pela subjectividade de cada um dos seus relatores e pelos códigos de ficção que herdamos do passado e que planeiam sobre qualquer construção de um relato.
(continua)